Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
20 de Maio de 2024

Abolicionismo penal

Publicado por Alice Bianchini
há 11 anos

Louk Hulsman

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no professorlfg. Com. Br

ALICE BIANCHINI, doutora em Direito penal pela PUC/SP e coeditora do Portal www.atualidadesdodireito.com.br

Introdução

Os movimentos de política criminal procuram delinear a forma de reação ao delito. Eles podem ser intervencionistas ou não intervencionistas.

Os primeiros pugnam pela ampliação do controle estatal, formal, via direito penal (confiam no direito penal); os segundos, em posição oposta, sustentam a diminuição (desconfiam do direito penal) ou a eliminação (não acreditam no direito penal) da intervenção estatal para resolver os conflitos penais ou penalizáveis, confiando mais nos (processos e) agentes de controle informais (sociais).

O fenômeno da crise da pena, especialmente da pena de prisão (todas as teorias da pena - absolutas, relativas ou mistas – acham-se em crise)[1], da ideia de ressocialização e do próprio Direito penal tem provocado múltiplas tendências e respostas (reações), com conteúdo muito diversificado, que vão (a) desde o incremento do punitivismo clássico até a adoção de novas formas hiperpunitivistas, passando pelo (b) abolicionismo mais radical, que sustenta o desaparecimento do próprio Direito penal, chegando, no final, no (c) abolicionismo moderado ou minimalismo, que prega a intervenção mínima do Direito penal, com máximas garantias.

Com exceção da corrente abolicionista radical, que reconhece claramente a deslegitimação da pena e do Direito penal (cf. Hulsman e Bernat de Celis), [2] todas as demais podem ser enfocadas, ressalvando-se, evidentemente, as peculiaridades de cada uma, como teorias legitimadoras (ou “re-legitimadoras”) do poder punitivo estatal, seja porque “ignora” a questão da sua “deslegitimação”, como é o caso dos movimentos punitivistas ou hiperpunitivistas, seja porque reconhece a deslegitimação do sistema penal, mas procura (re) legitimá-lo com base em um novo discurso ou em novas propostas.

Até por volta dos anos 60 as ideologias de esquerda (também conhecidas como progressistas), de um modo geral, posicionavam-se contra o uso do poder punitivo estatal, sobretudo em relação aos pobres e miseráveis ou em relação às minorias. Havia uma preocupação miniminalista ou mesmo abolicionista. A política criminal tinha que ter caráter social e, só em último caso, “penal”.

Apesar da importância histórico-social das respostas acima mencionadas (hiperpunitivismo, minimalismo e abolicionismo), o presente artigo irá tratar somente da última delas: o abolicionismo radical.

1. Postulados do abolicionismo e seus principais defensores

A corrente abolicionista radical sustenta que a pena e o próprio direito penal (o sistema penal) possuem efeitos mais negativos que positivos; advoga, por isso mesmo, pela eliminação total (presente e futura) de qualquer espécie de controle “formal” decorrente do delito, que deve dar lugar a outros modelos informais de solução de conflitos (Zaffaroni: 1990, p. 75 e ss.).

Dentre outros, são representantes do pensamento abolicionista radical Mathiesen (cuja doutrina ostenta forte inspiração marxista), Christie, Plack, Foucault etc. Seu principal propagador, no entanto, foi Louk Hulsman, cuja obra Penas perdidas não só se transformou em objeto de intermináveis polêmicas, como acabou inspirando vários trabalhos latino-americanos, principalmente o do penalista argentino Zaffaroni, que escreveu o livro En busca de las penas perdidas (1990). De acordo com a doutrina de Hulsman, as penas são perdidas principalmente por representarem um sofrimento inútil.

As posturas abolicionistas “não reconhecem justificação [legitimação] alguma ao direito penal e propugnam pela sua eliminação; impugnam desde a raiz seu fundamento ético-político ou consideram que as vantagens proporcionadas por ele são inferiores ao custo da tríplice constrição que produz: a limitação da liberdade de ação para os cumpridores da lei, o submetimento a juízo de todos os suspeitos de não a cumprir e o castigo de quantos se julguem que a descumpriram” (Ferrajoli: 1995, p. 247-248).

De acordo com Hassemer e Munõz Conde, a perspectiva abolicionista funda-se no seguinte pressuposto: “se o Direito penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as infrações delitivas, independentemente do status de seus autores, e quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor que se pode fazer é acabar de vez por todas com este sistema de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento acarreta sem produzir qualquer benefício” (Hassemer e Muñoz Conde: 2001, p. 361).

2. Objetivo do abolicionismo

A meta do abolicionismo de Hulsman (Hulsman e Bernat de Celis: 1997, p. 55 e ss.) é, portanto, o desaparecimento do sistema penal, mas isso não significa abolir todas as formas coercitivas de controle social. A sociedade, aliás, já conta com inúmeras formas não-penais de solução de conflitos (reparação civil, acordo, perdão, arbitragens etc.) e pode desenvolver muitas outras. O desaparecimento do sistema punitivo estatal (Hulsman-Bernat de Celis: 1997, p. 140) “abrirá, num convívio mais sadio e dinâmico, os caminhos de uma nova justiça”.

Por que abolir o sistema penal? O sistema penal formal deve ser abolido porque, em razão da grande influência teológico-escolástica, é patentemente maniqueista (os agentes do sistema são “bons”, enquanto os desviados são “maus”); é, de outro lado, uma “máquina desconexa” (suas instâncias: polícia, ministério público, magistratura, agentes penitenciários atuam compartimentadamente, desconexamente) (Hulsman e Bernat de Celis: 1987, p. 43 e ss.).

A prisão não é útil, despersonaliza e dessocializa o preso; o sistema penal, de outro lado, é muito burocratizado (não escuta bem as pessoas envolvidas nos conflitos, procura reconstruir os fatos de maneira superficial, fictícia, e a consequência disso é a aplicação de medidas fictícias, irreais; assim como o menu não é a refeição, o processo não é o fato real); só se interessa por um acontecimento isolado, um “flash”, dando pouca importância para o contexto biopsicossociológico do agente; ele, ademais, conforme Nils Christie, “rouba o conflito” das pessoas envolvidas, isto é, marginaliza a vítima de tal forma que se torna impossível qualquer contato entre ela e seu agressor; o sistema penal, por fim, só conta com um tipo de reação, a punitiva, logo, percebe-se o quanto ele foi concebido só para o mal, para a violência (vingança).

Significativo a este respeito é que o aparecimento destas doutrinas deu-se, de forma mais acentuada, em países nos quais a tendência predominante era a ressocialização (Holanda, Escandinávia, Estados Unidos), podendo-se vincular seu surgimento a uma reação oriunda do fracasso em que resultou a ideologia da recuperação (Silva Sánchez: 1992, p. 18).

3. Como se daria a abolição do sistema penal?

E de que modo (“como”?) se daria a abolição do sistema penal? Para Louk Hulsman (1984, p. 82 e ss.) o fim do direito penal como forma de controle social seria possível:

- em primeiro lugar, mudando a linguagem e aceitando a relatividade do conceito de crime; não se deve falar em crime senão em “situação problemática” ou “acidente”;

- em segundo lugar, aceitando e incrementando as regras civis de indenização, muito melhores “que trabalhar com o conceito metafísico de culpabilidade”; aliás, a maioria dos fatos criminalizáveis já são resolvidos pela sociedade de maneira informal, porque (diante da cifra negra altíssima) poucos são os que ingressam no sistema formal (é a “civilização” do Direito penal que já ocorre em muitos casos de abuso e violência sexual na Holanda);

- em terceiro lugar, desuniformizando a resposta estatal punitiva para as situações problemáticas, pois muitas vezes o que a vítima deseja não é a punição formal do culpado, senão a reparação dos seus danos e prejuízos;

- em quarto lugar, diminuindo, a intervenção estatal na sociedade, principalmente quando se trata de resolver algum conflito de interesses;

- em quinto lugar, abrindo amplo espaço para o consenso, para os contatos “cara a cara”;

- em sexto e último lugar, incrementando a tolerância e o respeito às diversidades pessoais.

Do ponto de vista político-criminal a proposta do abolicionismo é desinstitucionalizadora ou descentralizadora. Em poucas palavras: é não-intervencionista. Procura-se afastar o Estado da solução dos conflitos, deixando que a própria sociedade encontre mecanismos menos repressivos “capazes de alcançar a paz”. Criminalizar, diz Hulsman (1997, p. 99 e ss.), é centralizar e institucionalizar. E “quem persegue ou sugere uma política de descentralização e desinstitucionalização está imbuído de uma confiança muito maior nos processos de regulação sociais informais e não centralizados, ou menos formais e menos centralizados. As reticências a propósito da descriminalização parecem tanto mais incompreensíveis à medida que se percebe o papel que poderia ser desempenhado pelo sistema jurídico civil – feitas às necessárias adaptações – se lhe fosse dada a devida oportunidade”.

4. Críticas ao abolicionismo

A tese abolicionista sempre foi duramente criticada, especialmente porque, como afirmam Hassemer e Muñoz Conde (2001, p. 32), “não leva em conta a fascinação que provoca o mundo delitivo, que é um fenômeno que faz parte da nossa experiência cotidiana”.

Não obstante o acerto de muitas das conclusões abolicionistas, dá-se que pregações em favor do desaparecimento do Direito penal deixam de considerar o custo da anarquia punitiva, bem sopesado por Ferrajoli (1995, p. 335), quando afirma: “ao monopolizar a força, delimitar seus pressupostos e modalidades e excluir seu exercício arbitrário por parte de sujeitos não autorizados, a proibição e a ameaça penal protegem as possíveis partes ofendidas contra os delitos, enquanto que o juízo e a imposição da pena protegem, por paradoxal que possa parecer, aos réus (e aos inocentes de quem se suspeita como réus) contra vinganças e outras reações mais severas. Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, orientada à tutela de seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte.”

Daí decorre a importância do garantismo, que consiste na tutela dos direitos fundamentais: os quais — da vida à liberdade pessoal, das liberdades civis e políticas às expectativas sociais de subsistência, dos direitos individuais aos coletivos — representam os valores, os bens e os interesses, materiais e pré-políticos, que fundam e justificam a existência daqueles ‘artifícios’ — como os chamou Hobbes — que são o Direito e o Estado, cujo desfrute por parte de todos constitui a base substancial da democracia” (Ferrajoli: 1995, p. 29).

O direito penal, quando chamado a atuar na diminuição da violência que abala a sociedade e compromete o bem viver das pessoas, dada a sua característica eminentemente repressiva, acaba gerando, também, violência – violência formal –, razão pela qual há que trazê-lo a limites mínimos e estritamente necessários, o que representa a preocupação central das correntes minimalistas.

Apesar das críticas, no entanto, muitos dos postulados abolicionistas merecem especial reflexão. Como bem diz Pavarini (1995, p. 146), vemos o abolicionismo com “reservas”, mas mesmo assim é possível fazer “bom uso” dele, sem ser abolicionista. Suas teses, no mínimo, possuem grande fundo “ético”.

[1] Cervini - Os processos de descriminalização. Trad. Granja, Vaitsman, Pierangelli e Lornardi. São Paulo: RT, 1995. P. 29 e ss.) ou “deslegitimada”, como dizem alguns (Zaffaroni - En busca de las penas perdidas. 2. Ed. Bogotá: Ed. Temis, 1990.) ou “falida”, como sustenta em seu livro Cezar Roberto Bitencourt - Falência da prisão. São Paulo: RT, 1993. P. 143 e ss.

[2]Penas perdidas. Trad. Maria Lúcia Karan. Rio de Janeiro: LUAM, 1993. P. 55 e ss.

Referências bibliográficas

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da prisão. São Paulo: RT, 1993. CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. Trad. Granja, Vaitsman, Pierangelli e Lornardi. São Paulo: RT, 1995. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría do garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibanéz et al. Madrid: Trotta, 1995. HASSEMER, Winfried; Muñoz Conde, Francisco. Introducción a la Criminología y al Derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. HULSMAN, Louk. BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas. Trad. Maria Lúcia Karan. Rio de Janeiro: LUAM, 1993. P. 55 e ss. SILVA SANCHEZ, J. M.ª. Aproximación al Derecho penal contemporáneo. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 1992PAVARINI, Massimo. Los confines de la cárcel. Montevideo: Carlos Alvares Editor, 1995. ZAFFARONI, Raúl. En busca de las penas perdidas. 2. Ed. Bogotá: Ed. Temis, 1990.

  • Publicações245
  • Seguidores2285
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoArtigo
  • Visualizações15918
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/abolicionismo-penal/121814373

Informações relacionadas

Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
Notíciashá 14 anos

O que se entende por abolicionismo penal? - Joice de Souza Bezerra

Artigoshá 6 anos

Teorias das penas

Lincoln Paulino, Estudante de Direito
Artigoshá 4 anos

Movimentos do Direito Penal: Lei e Ordem, Garantismo, Abolicionismo, Funcionalismo e o Direito Penal do Inimigo.

Alisson Trajano, Advogado
Artigoshá 10 anos

Abolicionismo e Minimalismo Penal: A contração do avanço expansionista do Direito Penal Contemporâneo

Larissa Louback, Advogado
Artigoshá 2 anos

Movimento de Lei e Ordem

1 Comentário

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)

Como pesquisador novato no direito, mas com um irmão em situação de vítima fatal, acredito que um ponto deixado de lado na discussão do assunto consiste na fundamentação ou base do "direito" de punir do estado, ainda ligado ao modelo de estado absolutista de Hobbes, muito retrógrado para mim, mas mesmo nele, do ponto de vista do contrato social, no qual o indivíduo abre mão de uma parcela de sua liberdade em prol do bem estar social, e no qual o estado assume a responsabilidade de "proteger" o cidadão, vê-se claramente que numa situação de "crime", o estado demonstra nitidamente sua falha, assim, para a vítima, friamente falando (me considero vítima solidária), o maior delinquente não é o réu apresentado pelo estado, sendo apenas um "bode espiatório", apresentado pelo verdadeiro delinquente, transgressor do pacto social, isto é o próprio estado, e diga-se de passagem, com agravantes, pois aproveita-se do estado de fragilidade das vítimas, "cegadas" por fortes reações psicológicas (vingança) e portanto incapazes de avaliar a real situação. Da mesma forma acredito que as outras críticas ao abolicionismo podem ser perfeitamente afastadas, como por exemplo a questão econômica, tendo em vista que os recursos atualmente empregados poderiam perfeitamente ser redirecionados e atenderiam melhor (neste ponto acredito ser necessários maiores esforços de detalhamento) a sociedade (vítimas). Estou no quinto semestre de direito, mas já tenho outra graduação além de mestrado em outra área (exatas), estou tentando levar a cabo uma pesquisa mais profunda neste assunto mas tenho encontrado muito pouco apoio, por isso, fiquei muito feliz em encontrar este trabalho. Obrigado. continuar lendo